O conto do escritor e poeta francês Guy de Maupassant, publicado em 1884, traz a história de Matilda Loisel, uma bela mulher nascida na pequena burguesia francesa. Matilda sonhava em ser rica e viver em palácios, mas o destino reservara-lhe um casamento com um simples funcionário público e uma vida de conforto, mas sem grandes ostentações.

Senhora Loisel passava os dias imaginando joias, belas roupas e festas em castelos. Sonhava em ter a vida de sua amiga de colégio, a rica senhora Jeanne Forestier. Mesmo sendo muito abastada, Jeanne sempre tratou Matilda com muito carinho e respeito. Matilda raramente visitava a amiga, pois sofria enormemente ao retornar a sua casa para a vida medíocre que acreditava levar em sua casa.

Certa vez, o marido de Matilda chegou em casa radiante com um convite para uma importante festa de um ministro de Estado. Quando Matilda começou a chorar por não ter uma roupa adequada para a ocasião, o amoroso marido lhe ofereceu as parcas economias que ele vinha guardando há muitos anos para realizar o sonho de comprar uma espingarda de caça. Ela encomendou um vestido.

O vestido ficou pronto, mas isso não pôs fim ao sofrimento da senhora Loisel. Ela considerava que não teria como ir à festa sem uma bela joia. O marido então sugeriu que ela procurasse a senhora Forestier para pedir uma peça emprestada. Matilda visitou a amiga e saiu de lá com um belo colar de diamantes. Na festa, a jovem viveu uma noite dos sonhos. Posou deslumbrante, com o lindo vestido e a joia como adorno. Dançou, se divertiu e foi o centro de muitas atenções.

Só que Matilda acabou perdendo o colar que a amiga lhe confiara. Depois de uma angustiante semana de desesperada procura, o casal decidiu que não havia outra solução a não ser vender os bens, dispensar os empregados e mudar de casa para pagar a dívida resultante da compra de um novo colar. Matilda, então, devolveu o colar e a senhora Forestier não desconfiou da troca.

O pagamento da dívida tomou dez longos anos de trabalho do casal. Ao fim desse período, Matilda tornou-se uma sofrida mulher do povo, que não guardava mais no semblante a beleza de outros tempos. Depois de ter as dívidas quitadas, ela saiu para um passeio pelos Champs Elysées e reencontrou a amiga rica.

Em um impulso, resolveu falar com a Jeanne, que não a reconheceu. Sou eu, a Matilda! A senhora Forestier ficou espantada com toda a mudança que Matilda tinha sofrido, mas disfarçou e reclamou que a amiga nunca mais havia lhe procurado.

Matilda contou que perdera o colar e explicou que passara todos aqueles anos trabalhando para pagar as dívidas contraídas com a reposição da peça. Madames Forestier foi ficando cada vez mais paralisada e apavorada com a situação. Pegou a mão da amiga e disse: Oh! Minha pobre Matilda! Minhas joias eram falsas. Não valiam mais que alguns francos.

Após 15 anos da publicação do drama da senhora Loisel, o filósofo e economista Thorstein Veblen publicou Theory of the leisure class, em que cunhou o termo “consumo conspícuo”, definido como o consumo para nos diferenciar dos nossos semelhantes. Assim como Matilda gastou sua juventude em função de um falso colar de diamantes, muitas pessoas gastam sua vida buscando bens que possam as diferenciar aos olhos dos outros.

Que bens são esses que servem para nos diferenciar dos nossos semelhantes? Existem bens que melhoram nossa vida por suas qualidades intrínsecas, são os chamados bens democráticos. Um pão, quando estamos com fome é um exemplo; se todas as pessoas do mundo pudessem comer o mesmo pão, em nada mudaria o prazer que sentimos ao saciar nossa fome.

Já uma joia, uma bolsa de luxo ou um relógio de marca reconhecida têm como principal valor não suas qualidades intrínsecas; demonstram o poder econômico e a posição social de seus proprietários frente aos demais humanos. Por isso, são chamados bens posicionais, já que servem para hierarquizar a sociedade, mostrar quem tem ou não tem poder econômico. O desejo por posição social, ao contrário de nossas necessidades físicas, pode ser infinito.

Estamos vivendo uma pandemia, em que um vírus microscópio devolve a todos, ricos e pobres, nossa igualdade como seres humanos; somos todos vulneráveis. Porém, se o vírus nos recoloca como mortais, ele nos diferencia ainda mais na forma como somos afetados economicamente e, infelizmente, até na expectativa de como seremos tratados em situações extremas.

Eventos extremos, como o que estamos vivendo, deixam marcas profundas nas sociedades. O mundo e, particularmente, a Europa mudaram com as duas guerras mundiais. A gripe espanhola teve um papel importante na disseminação do saneamento nos países europeus. O atentado de 11 de setembro reconfigurou o modo de vida dos EUA e do mundo em menor intensidade.

Guy de Maupassant e Thorstein Veblen foram frutos do desconforto com que a sociedade encaravam a concentração de riqueza que estava sendo produzida pela industrialização, pela divisão do trabalho e consequente urbanização da população que o então jovem capitalismo provocava.

A COVID-19 certamente está provocando mortes, sofrimento físico e psicológico em muitas pessoas, além de estragos econômicos em escala inimaginável e ainda de difícil dimensionamento, o que certamente trará mais sofrimento. No entanto, existe uma convicção que esse não será o último desafio do Homo sapiens aqui na Terra, ao menos como espécie sairemos desta. O que se coloca é: como sairemos? Quais as mudanças ele vai provocar nas sociedades?

Certamente o digital que vinha se entranhando ao ritmo de maratonista da sociedade ganhou velocidade de corredor de 100 metros rasos. O trabalho remoto definitivamente passou a ser uma possibilidade tecnológica, falta ele demostrar sua viabilidade social, mas certamente os trabalhadores da sociedade do conhecimento nunca mais trabalharão da mesma forma.

No campo das expectativas, talvez ele demonstre ao mundo e, particularmente, ao Brasil que não podemos viver em ilhas de progresso e riqueza enquanto cercados por um mar de iniquidade e pobreza. Oxalá a filantropia e o sentimento de justiça social floresçam e perdurem no Brasil. Quem sabe, finalmente, não possamos combater com determinação a absurda e vergonhosa situação do saneamento público e das moradias sub-humanas que parecem estar tão impregnadas no consciente coletivo do brasileiro ao ponto de ser encaradas como natural.

O que vai acontecer no plano social depende pouco de cada um de nós. Mas individualmente, se faremos mudanças e quais serão, depende somente de nossas decisões. O que queremos é nossa velha vida igual ao que sempre foi, ou o sofrimento presente fará com que busquemos uma vida diferente? Essa é a grande questão.

Então retorno à pobre Matilda; acredito que a pandemia deveria levar cada um a avaliar seus gastos, tentando focar naqueles que melhorem sua vida ou, em outras palavras, focar em bens democráticos e reduzir ao máximo as despesas com os bens posicionais.

Author

É doutor em Finanças Comportamentais, com pós-doutorado em Psicologia Cognitiva pela Université Libre de Bruxelles (ULB) e professor de Finanças Pessoais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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