Deus me proteja de mim

E da maldade de gente boa

Da bondade da pessoa ruim

Eu vinha dirigindo pelas intermináveis retas do deserto da Argentina, e essa canção de Chico César começou a tocar. Logo pensei ter ouvido errado. Repeti a música uma, duas, três vezes, mas vi que realmente escutei certo.

Como não tenho qualquer intimidade com o compositor e não posso perguntar a ele o significado da sua música, me pus a pensar no que esses versos dizem.

Muitas vezes pessoas más, com suas maldades, nos fazem crescer e pessoas boas, com suas bondades, nos limitam. Se a bondade de pessoas boas nos limita, seria então maldade? E se as maldades nos impulsionam, seriam então bondades?

Não é possível dizer que toda bondade é algo bom ou que toda maldade é algo ruim. A realidade é muito mais complexa do que isso. Pessoas com boas intenções podem nos prejudicar se sua bondade nos impede de aprender e crescer. Por outro lado, pessoas más podem nos ajudar a crescer se nós usarmos suas ações negativas como oportunidade de aprendizado e evolução.

Quando meu filho tinha uns sete ou oito anos, existia uma moda de um brinquedo chamado Beyblade, que eram piões colecionáveis utilizados em competições. Meu filho tinha dois desses pequenos brinquedos. Um dia, um amigo dele veio em nossa casa e trouxe uma caixa enorme com umas duas dezenas desses piões.

Claro que meu filho veio pedir uma coleção igual, e eu disse a ele que não daria. Ele perguntou se eu tinha dinheiro para comprar, e eu disse que sim, tinha dinheiro, mas não lhe daria os brinquedos. Chorando e frustrado, ele disse que eu era ruim e o pai do amigo dele era bom.

Há pouco tempo, perguntei ao meu filho, hoje adulto, se ele se lembra desse episódio, e ele esqueceu completamente. Eu ainda hoje me lembro da dor que tive em dizer não a tão legítimo desejo infantil que eu poderia facilmente realizar.

Educar um filho dizendo sempre sim pode ser muito fácil. Para o filho que sempre recebe sim, isso pode parecer enorme bondade. Porém, eu sempre acreditei na frase de que mar tranquilo não faz um bom marinheiro. Acredito que as pessoas aprendem e se desenvolvem mais rapidamente quando enfrentam desafios e adversidades.

Quando um pai ou uma mãe diz não para um filho ou uma filha, gera uma frustração na criança, e há pais que acreditam que não devem causar esse tipo de desconforto. Assim, os filhos crescem sem ter aprendido a suportar frustrações – e como qualquer adulto sabe, viver nos exige essa capacidade. Quem tem resiliência para suportar as inevitáveis frustrações da vida tem mais chances de ser um adulto equilibrado e de sucesso.

Assim como um marinheiro precisa ser capaz de lidar com as condições adversas do mar, as pessoas precisam ser capazes de enfrentar desafios e superar obstáculos para crescer e evoluir. A adversidade pode ser uma oportunidade para desenvolver resiliência e autoconfiança. Quando as coisas são fáceis e não há obstáculos, é menos provável que os filhos se desenvolvam e saiam da zona de conforto. Por outro lado, enfrentar desafios pode levá-los a aprender novas habilidades e a encontrar soluções criativas para problemas.

Eu e Celina, minha companheira, nunca hesitamos em dizer não aos nossos filhos, sempre deixamos claro que o trabalho da casa precisaria ser compartilhado entre todos e mantivemos um padrão de consumo aquém das nossas possibilidades. Só não economizávamos com educação e cultura. Hoje somos pais de dois empresários que nos enchem de orgulho.

Acreditamos que educar exige estabelecer limites claros e capacidade de dizer não quando necessário, pois isso protege os filhos e os ensina a tomar decisões responsáveis e saudáveis. Ao mesmo tempo, acreditamos que é importante que os pais expliquem suas decisões e permitam que seus filhos tenham a oportunidade de expressar suas opiniões e preocupações. O diálogo aberto e a comunicação clara são fundamentais para construir uma relação familiar saudável.

Eu perdi meu pai muito cedo, e minha mãe ficou muito jovem com três filhos para cuidar. Ela tinha que dizer muitos nãos por absoluta impossibilidade de dizer sim. Já Celina se criou em uma família abastada em que sempre se dizia sim.

Quando casamos, logo Celina passou a buscar em mim o mesmo apoio que sempre recebera de seu pai para resolver problemas. Eu, porém, sabia a história da minha mãe, que saiu da casa de um pai provedor e protetor para se casar com um marido que cuidava de todo o dinheiro e de todos os negócios. Vi o quanto ela sofreu quando meu pai morreu e ela precisou aprender a lidar com todas as responsabilidades de uma só vez.

Assim que nos casamos, deixei claro para a Celina que ela teria que cuidar do seu dinheiro e resolver seus problemas. Sei o quanto ela sofreu por não ter aprendido a controlar suas finanças, enfrentar frustrações e brigar para fazer valer suas opiniões. Felizmente, a Celina superou as dificuldades e é uma mulher bem-sucedida que cuidaria muito bem do seu dinheiro caso eu já não estivesse mais aqui.

Como planejador financeiro, uma das tarefas de que gosto é fazer mediação de conflitos em cisões patrimoniais. Geralmente esse trabalho se dá em divórcios ou heranças. Fico chocado em ver como existem tantas mulheres que em nenhum momento foram preparadas para o embate, para brigar por suas posições e como tantas não têm nenhum preparo para lidar com dinheiro. Muitas delas foram criadas por pais bons e protetores e se casaram com maridos também bons e protetores.

Da mesma forma, muitos maridos saíram da casa de mães que faziam todas as tarefas domésticas e entraram em casas onde a esposa cuidava de tudo. Ao se verem sozinhos, não sabem sequer passar uma camisa ou cozinhar suas próprias refeições. Felizmente, as gerações mais jovens estão abandonando modelos ultrapassados de divisão de tarefas entre homens e mulheres e têm sido capazes de construir uma relação mais equitativa entre os gêneros.

Talvez essas sejam bondades de pessoas ruins das quais o Chico César pede a Deus para ser protegido. Sim, porque considero que quem tira a capacidade de outra pessoa ser independente e autônoma está fazendo uma maldade, mesmo que pense que tem toda a bondade do mundo.

O impacto que as ações dos outros têm em nós depende muito da nossa visão e da forma como lidamos com elas. Portanto, é importante que desenvolvamos uma perspectiva saudável e equilibrada sobre o mundo e as pessoas ao nosso redor. Se a vida não é um mar de rosas, é fundamental aproveitar os desafios e as frustrações como oportunidades de crescimento e aprendizado, independentemente da natureza das ações que encontramos.

Author

É doutor em Finanças Comportamentais, com pós-doutorado em Psicologia Cognitiva pela Université Libre de Bruxelles (ULB) e professor de Finanças Pessoais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Write A Comment