Segundo a ministra Damares Alves, “menino veste azul e menina veste rosa”. A frase, a princípio, poderia ser colocada na mesma categoria de tantas outras bobagens ditas por figuras públicas importantes. Porém, a explicação dada pela ministra causa preocupação: ela nos informa que a frase é “metafórica”.
InMetáfora é uma figura de linguagem em que uma palavra, ou conceito, que denota um tipo de objeto ou ação é usada em lugar de outra, de modo a sugerir uma semelhança ou analogia entre elas. Susan Sontag, eu seu livro A Doença como Metáfora, explora muito bem as metáforas bélicas usadas na medicina (“células inimigas”, “arsenal terapêutico”, “combate à doença”, “guerra ao câncer” etc). Ao atribuir a frase ao campo das metáforas, podemos entender que existe uma diferença tão óbvia entre os gêneros quanto entre duas cores, uma primária que designa o homem e outra terciária que designa as mulheres. Já aí podemos intuir uma relação hierárquica. Para quem tem uma visão criacionista da origem humana, talvez ainda faça algum sentido ver as coisas dessa forma.
De fato, a sociedade chegou a um momento de sua longa evolução biológica e cultural em que os pensamentos simplistas e reducionistas tendem a cair no ridículo, frente à complexidade dos fenômenos e a plasticidade das relações humanas. As velhas categorias que definiam os sexos (e agora fala-se em gêneros) tornaram-se no mínimo obsoletas a partir das mudanças dramáticas havidas no lapso de um século, aceleradas pela revolução contracultural dos anos sessenta e elevadas a estranhas potências no momento em que vivemos. Os conceitos tradicionais de família, de casamento, de sexualidade e de identidade de gênero – a despeito dos gostos pessoais – pouco nos dizem do que se vive hoje, pelo menos nas sociedades menos tradicionais. Tudo isso está longe de ser traduzido pela distinção simplista – metafórica ou não – entre as duas cores da predileção da ministra.
Ampliando a paleta
Pessoas com mais de cinquenta anos, como nós, ainda guardam o que foi um saudável hábito: consultar um dicionário sempre que se quer definir algo. Se hoje se pergunta ao Google, que é sem dúvida uma ferramenta maravilhosa quando bem usada, nós perguntávamos ao Aurélio. Então, Aurélio, o que significa ser mulher?
A resposta é desalentadora: ele afirma que mulher é “o ser humano do sexo feminino capaz de conceber e parir outros seres humanos, e que se distingue do homem por essas características”. Ou seja, o que encontro é a descrição de um “ser humano fêmea”. A maternidade, real ou potencial, cada vez menos diz sobre a mulher. O autor tentou ampliar seu conceito, e mais adiante acrescenta: “mulher dotada das chamadas qualidades e sentimentos femininos (carinho, compreensão, dedicação ao lar e à família, intuição)”. Será possível aceitar esses atributos sem ver, neles, um viés machista desqualificador? A tarefa do filólogo não é mais fácil do que a do psicólogo ou do cientista social.
Consideremos que a edição consultada já tem mais de trinta anos de publicação. Muita coisa mudou nesse tempo. A maternidade, como expressão da natureza, já não define a condição feminina. Tampouco os atributos exclusivamente tidos como culturais: a afetividade não é, nem deve ser, um privilégio feminino, embora tenha componentes hormonais já estabelecidos. Nem mesmo a dedicação ao lar e aos filhos, tarefas cada vez mais compartilhadas. E, para completar, a velha e rígida dicotomia entre natureza e cultura perdeu muito de seu valor explicativo.
Nós, os homens, vamos deixando de ser sinônimos, inclusive do ponto de vista linguístico, de “seres humanos”. Ainda que diferenças biológicas entre os sexos existam, o ser humano está longe de ser exclusivamente “natural”, e a cultura, que é parte de sua natureza, o conforma em suas inúmeras maneiras de ser, de se relacionar, de se constituir socialmente. Também os homens vem se libertando dos estereótipos e das expectativas sociais que o restringiam e aprisionavam.
Já podemos ser tão afetivos quanto racionais (todos os seres humanos o são); já podemos chorar sem tanta vergonha, e nos emocionar diante do belo e do triste; já podemos exercitar a paternidade de formas antes inimaginadas, com tantas vantagens para o nosso próprio aprendizado e crescimento. Já podemos usar rosa, uma cor tão elegante e delicada. A propósito, já está demonstrado pelas neurociências que os processos decisórios não são exclusivamente racionais, e que a boa orquestração entre razão e emoção, entre raciocínio e intuição, entre intelecto e sensibilidade, foi a chave do nosso sucesso como espécie.
O gênero e os investimentos
E o que essa discussão sobre gêneros tem a ver com finanças pessoais, tema desta coluna? Muitas coisas! Em um passado nem tão distante, quando ainda não se havia definido as cores para os gêneros, já existia a expressão: “não adianta o homem ganhar dinheiro aos baldes, se a mulher com uma colherzinha pode jogar tudo fora”.
Tradicionalmente, a despeito do discurso de que era o homem o único responsável pelo bem-estar material da família, a mulher encarregava-se de gerenciar o lar para que o dinheiro não se perdesse. E há muito essa divisão de papéis já vem se rompendo. Haja vista o exemplo da própria Ministra Damares, ela não está apenas cuidando da casa, tornou-se advogada, ministra e pastora evangélica. Aliás, os evangélicos se destacam entre as religiões monoteístas por darem maior protagonismo as mulheres. Não existem ministras da palavra de Deus no Judaísmo, Catolicismo ou Islamismo.
Mesmo o mais descuidado observador pode notar que a mulher abandonou o posto de rainha do lar para lutar ao lado dos homens para também trazer o sustento para o lar. Sendo assim, parece evidente que o homem também deve participar das atividades domésticas antes restritas as mulheres. Homem pode cozinhar, lavar louça, limpar a casa. Mulher pode trocar lâmpada, pintar paredes, cortar grama. Por que não haveríamos de poder?
Porém, em um campo as mulheres ainda teimam em reservar aos homens o protagonismo, os investimentos. Em qualquer banco ou corretora a maior parte das carteiras estão em nome dos homens. No Tesouro Direto, mais de 70% do estoque de investimentos está em nome de homens. Mesmo entre as executivas, que frequentemente ganham muito mais que os maridos, ainda é comum que a carteira de investimentos do casal seja administrada pelos homens. Assim, quando após a separação ou a viuvez as mulheres ficam sozinhas na administração das finanças, comumente elas ficam completamente perdidas na gestão do seu patrimônio duramente conquistado.
Homens e mulheres têm as mesmas capacidades cognitivas, e isto se aplica à capacidade de cuidar dos investimentos, portanto, investimento pode, e deve, também ser coisa de mulher. Além disto homens tendem a ser mais acometidos pelo excesso de confiança (Overconfidence) como demonstrou o trabalho dos professores Brad M. Barber Terrance Odean no artigo de 2001 “Boys will be Boys: Gender, Overconfidence, and Common Stock Investment”. Segundo este trabalho na média gestores homens tendem movimentar mais seus respectivos portfólios que as mulheres. Após este pioneiro estudo, diversos outros tem demonstrado que, na média, carteiras administradas por mulheres tendem a ter um desempenho superior ao dos homens.
Que sejam muito bem-vindas!