Segundo dicionários, normal é um adjetivo que qualifica algo como comum, regular e usual, significando que não foge aos padrões ou à norma.
Em matemática, a curva normal, também conhecida como de Gauss, é uma curva matemática teórica. Baseia-se em dois parâmetros, a média e o desvio-padrão, que são os elementos que definem uma determinada população em relação a uma característica qualquer, estudada e medida em integrantes desse grupo.
Grande parte dos fenômenos naturais se distribui como uma curva normal. Se colocássemos em uma curva o peso ou a altura de todos os humanos, encontraríamos uma curva normal. Assim, tanto o turco Sultan Kösen com seus 2 metros e 51 centímetros de altura, quanto o nepalês Chandra Bahadur Dangi com 54,6 centímetros de altura são normais. Porém, como eles estão nos limites da curva, tendemos a pensar que não são.
Eu, Jurandir, nasci em uma fazenda e só fui para a escola com sete anos, enquanto boa parte dos meus colegas já estava frequentando o colégio há mais tempo. A maioria dos alunos já conhecia as letras, eu não. Porém, meu pai sempre me estimulou muito em matemática e, ao entrar no primeiro ano escolar, eu já sabia fazer várias contas.
Eu estava no limite inferior da curva normal em português e no limite superior em matemática. De forma errada, passei a odiar as aulas de português e amar as de matemática, e isso se perpetuou por toda minha vida.
Para você que costuma ler meus artigos, pode parecer estranho eu dizer que sempre fui péssimo em português, porém é a mais pura verdade. Ortografia e gramática sempre foram um enorme pesadelo. Eu também tinha pavor de escrever. Por essa limitação, fiquei muitos anos sem expor minhas ideias de forma escrita, até o dia que descobri que poderia ter uma revisora para meus textos. Com essa adaptação, acabei me tornando um escritor.
Durante quase nove anos, a Emília Chagas cumpriu a tarefa de revisar o que eu escrevia. Depois que ela saiu, sofri um bocado até que conheci a Flavia Neves, que atualmente revisa o que escrevo e hoje redige este artigo em parceria comigo. Até aí tudo poderia parecer absolutamente “normal”, exceto por uma característica muito peculiar: a Flavia é autista. E ela, a partir de agora, é quem falará em primeira pessoa neste artigo.
Eu, Flavia, fiz licenciatura em Letras na Universidade Federal do Espírito Santo. Na época, eu ainda não tinha laudo nem diagnóstico. Tive mesmo foi muita sorte: professores que lutaram administrativamente junto comigo pelo cumprimento irrestrito da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, para que eu fosse avaliada de forma adaptada, dentro de minhas competências e habilidades, mesmo sem qualquer papel assinado por médico. Depois disso, já passei como estudante por cinco outras instituições de ensino. De nenhuma delas, saí formada.
No mercado de trabalho, minha experiência não é muito diferente. Na área de educação, que é uma de minhas paixões, ainda espero encontrar espaço para desenvolver meu potencial, embora as perspectivas não sejam nada animadoras. Como revisora de texto, também não me adaptei às condições de trabalho, mas aos poucos venho encontrando caminhos.
Uso meu hiperfoco a favor da revisão, mas nem por isso me adequo aos prazos usuais do mercado. Pelo contrário, preciso de mais tempo para revisar, pois não posso fugir de minha natureza detalhista. Depois de mais de dez anos atuando na área, percebi que alguns clientes se tornaram fiéis justamente por causa do meu perfeccionismo, então venho transformando um ponto fraco em diferencial, mas isso só foi possível quando as oportunidades passaram a ser adaptadas às minhas necessidades específicas – que são muitas.
Tenho grande talento para escrita e posso falar com desenvoltura quando não apresento mutismo situacional ou alguma desregulação, mas posso ter muita dificuldade em usar essa habilidade com as palavras para estabelecer comunicação com as outras pessoas.
Mesmo sendo altamente competente em leitura, escrita e exposição oral, nem sempre entendo textos técnicos, regras sociais, processos burocráticos, diálogos com trocas de turno, conversas orais síncronas e informações em sites, por exemplo. Não sei, muitas vezes, como iniciar uma conversa para tirar uma dúvida, dar ou pedir um feedback, solicitar orientações. Com suporte e adaptações, consigo fazer tudo isso.
O artigo segundo da Lei Brasileira de Inclusão diz que, quando uma característica de alguém, em interação com uma ou mais barreiras, obstrui sua participação plena e efetiva na sociedade, há uma deficiência, logo, um problema social. Removidas as barreiras, as pessoas se desenvolvem.
Adaptações são, portanto, um fator indispensável para o acesso digno ao trabalho, que é um direito humano básico de todas as pessoas. A inclusão no mercado não é uma questão de mérito pessoal ou mudança de mentalidade simplesmente. A atitude de todas as pessoas envolvidas nas relações de trabalho é fundamental.
Desde novembro de 2020, integro o grupo de estudos “Traduzir-se: autismo em primeira pessoa na prática acadêmica”, desenvolvido pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri e coordenado pelo professor Luiz Henrique Magnani, autista e pós-doutor em letras pela Universidade de São Paulo.
Junto com pessoas autistas e não autistas de diversos locais do Brasil, eu participo do grupo do meu jeito – e aprendo muita coisa. Compreendi com as discussões coletivas, por exemplo, que toda barreira é, antes de tudo, atitudinal. Não adaptar, afinal, é uma atitude.
Pessoas autistas são diversas como todas as outras. Há talentos de todos os graus de suporte e em todas as áreas. O tipo e a quantidade de adaptações necessárias ao desenvolvimento pessoal variam totalmente. Assim, para incluir pessoas neurodivergentes no mercado, mais do que abrir vagas para alguns tipos específicos de autistas, mercantilizando características como hiperfoco, é preciso ampliar o debate, inovar e continuar refletindo a cada nova ação.
Hoje, Jurandir e eu trouxemos a discussão a partir do meu exemplo pessoal, mas as adaptações variam muito, o que serve para um autista não necessariamente inclui todos. Os próprios autistas precisam fazer parte desse debate e mostrar ao mercado a diversidade de perspectivas e necessidades.
A espécie humana, assim como as outras, está em constante evolução, e a chave desse processo sempre foi a adaptação. Como somos seres sociais, a questão aqui não consiste em adaptar pessoas, mas ambientes, dinâmicas, rotinas, instituições e estruturas. Afinal, não é desejável que ninguém se mutile para caber, seja lá onde for.
Provavelmente, as instituições que não aprenderem a incluir – não só autistas como toda diversidade humana – irão perecer ou, no mínimo, perder grandes oportunidades e talentos. Como disse Temple Grandin, uma cientista autista, o mundo precisa de todos os tipos de mentes. Para nossa sorte, a curva de Gauss nunca será uma simples linha reta.