Na edição de junho de 2015 desta revista, escrevi o artigo “A construção do currículo interior” e abordei sobre o livro “A estrada para o caráter”, de David Brooks, na época ainda sem tradução para o português. Em 2019, Brooks lançou “A Segunda Montanha”, que imediatamente se tornou um best-seller e foi logo traduzido para o português.
Na primeira obra, Brooks afirmava que todos nós possuímos duas naturezas. Uma centra-se em sucesso externo – riqueza, fama, status e uma grande carreira. A outra objetiva a bondade interna, impulsionada por um desejo espiritual, não só para fazer o bem, mas para ser bom – honesto, amoroso e firme. Essa segunda natureza não busca a felicidade superficialmente definida; ela procura compromissos emocionais e uma alegria moral profunda.
Para David, os indivíduos e as sociedades prosperam quando as duas naturezas entram em equilíbrio. Porém vivemos em uma cultura que nos encoraja a pensar de forma preponderante no sucesso externo. Fortalecemos uma perna e deixamos a outra definhar. Era exatamente o que estava ocorrendo com ele, que vinha tendo uma vida superficial, focada em colher os frutos de seus esforços, colocando a construção do currículo à frente de como queria ser lembrado. Resolveu então enfrentar seu grande inimigo: sua própria ânsia por sucesso exterior.
Estranhamente o sucesso do primeiro livro exacerbou no autor a natureza que buscava riqueza, fama e status, não a que ele pregava na obra. Sucedeu-se uma série de problemas pessoais até ele se lançar ao segundo livro, no qual admite que fracassos pessoais são muito mais poderosos para a jornada da bondade do que o sucesso. O novo livro é focado nas construções coletivas, no social e nas comunidades.
Como o autor reconhece na introdução, as duas naturezas da obra anterior são bastante semelhantes às duas montanhas do segundo livro, porém ele afirma que quando escreveu o primeiro ainda estava preso a “uma cadeia de individualismo” – na época, sua visão era de que o esforço para a construção das virtudes da segunda natureza era empreendido de forma individual.
Assim como indivíduos podem mudar com uma crise, as nações podem construir grandes respostas coletivas atravessando mudanças nos seus sistemas morais.
Esse pensamento me levou imediatamente a outro livro lançado em 2019, “Reviravolta: Como indivíduos e nações bem-sucedidas se recuperam das crises”, do grande escritor Jared Diamond. Na obra, ganhadora do prêmio Pulitzer, Diamond trata da resolução de crises e da forma como são superadas tanto por indivíduos quanto por nações.
O autor aborda as crises por que passaram países como a Finlândia com a invasão da União Soviética, o Japão na era Meiji, o Chile com Allende e Pinochet, a Indonésia e Sukarno, a Alemanha com as cicatrizes do nazismo, a Austrália e a construção de uma nação entre imigrantes e nativos. Depois de analisar as do passado, Diamond se põe a analisar as crises em curso em 2019, sem sequer imaginar o que passaríamos no ano seguinte.
Se o mundo passa por vários colapsos, o que dizer do Brasil?
Estamos sendo dilacerados por uma crise sanitária sem precedentes e possivelmente chegaremos a mais de meio milhão de mortos pela COVID-19. Vemos médicos tendo que escolher pacientes para salvar e deixando outros para morrer por absoluta falta de recursos. Um país que já desperdiçou mais da metade do seu bônus demográfico sem conseguir aproveitar esse momento único da história para abandonar a companhia das nações menos desenvolvidas e ocupar o merecido lugar entre as desenvolvidas, como nossa generosa e rica natureza permitiria.
As nossas instituições estão em profundo conflito. Cada dia nos aproximamos mais e mais de soluções não democráticas. A nação está profundamente dividida e dois líderes populistas e personalistas tudo fazem para acirrar os conflitos internos.
É incrível, mas os dois principais atores das disputas eleitorais chegaram ao comando do país contando com imenso apoio popular e ambos desperdiçaram seus capitais políticos em projetos egoístas de perpetuação do poder. Infelizmente são homens da primeira montanha, homens que colocam seus projetos personalistas acima dos interesses da nação.
Cada um desses líderes de características messiânicas conta com defensores raivosos dispostos a atacar quem pense diferente. Cada lado se julga detentor da verdade absoluta e acredita na destruição daqueles que pensam de outra forma. Brincam com a possibilidade nada desprezível de uma guerra civil.
Sim, a crise é profunda e grave. E aqui chego ao real objetivo de ter trazido David Brooks e Jared Diamond para este artigo: ambos enxergam as crises como reais possibilidades de mudança. Os dois consideram que o reconhecimento da situação pode ser o início da solução dos problemas.
A grande questão é saber se continuaremos apostando nos extremos ou se teremos condições de estruturar uma proposta que aposte na agregação, no convencimento e no amor. Precisamos de um líder da segunda montanha, um líder que não se ache dono supremo da verdade, alguém que saiba dialogar com os opostos e que tenha capacidade de governar um país multifacetado e rico como o Brasil.
Mesmo diante da enorme crise, sigo otimista. Se já está difícil viver com otimismo, imagine se nos deixarmos abater pelo pessimismo.