Uma frase atribuída ao legislador Grego Sólon afirma que um homem só pode ser considerado venturoso após sua morte. Sim, Sólon. Raymundo Magliano Filho foi um homem venturoso, um homem que viveu uma vida que valeu a pena ser vivida. E nos deixou, vítima da Covid-19, no dia 11 de janeiro de 2021.
Raymundo, ou Raimundinho, como era carinhosamente chamado, fazia parte do conselho editorial desta revista desde o lançamento. Na primeira reunião, ele pediu a palavra, olhou demoradamente para todos os membros, então, perguntou: “O que é isto? Quem nós somos?”.
Com a impressionante oratória que lhe era peculiar, o Raymundo perguntou: “Em que mundo nós vivemos? Não tem nenhum negro, nenhuma mulher – será que o mercado de capitais é um mundo só para homens brancos?”. Hoje, diversidade dos conselhos é uma pauta comum; naquela época, não.
Por qualquer ângulo que se olhe para a vida do seu Raymundo, vamos ver um homem que sempre esteve além do seu tempo, alguém que pautou a vida pela ética, pela inclusão e pelo bem comum.
Para alguns, ele poderia parecer um sonhador, já que a filosofia era uma das suas grandes paixões. Nas aulas particulares semanais que ele fazia, estudava muitos pensadores como Norberto Bobbio, Hannah Arendt e Antonio Gramsci, o que lhe rendeu muitas ideias, projetos e livros, como “A Força das Ideias para um Capitalismo Sustentável” e “Um Caminho para o Brasil”.
Um dos grandes cases de sucesso da carreira dele foi o Movimento de Popularização da Bovespa (2001-2008), que democratizou o acesso aos investimentos e deu a base necessária para o mercado de capitais que vemos hoje, também inspirado nos conceitos dos filósofos que Magliano admirava.
Esse homem revolucionário, simples e gentil era um verdadeiro diplomata. Levou a Bolsa à praia e aproximou sindicatos, mulheres, estudantes e os mais diferentes públicos daquela entidade que parecia ser para poucos, mas que podia ser de muitos. De bermudão, jornal embaixo do braço e sorriso largo, Magliano tinha sempre tempo e disposição para falar sobre os conceitos de grandes pensadores e levantar bandeiras que mostravam a importância da diversidade –assunto que nem estava em voga na época – e da democracia para que as ideias sejam sustentáveis para a sociedade. Para ele, a concentração bancária, o machismo e a falta de direitos iguais ainda faziam com que a sociedade precisasse evoluir muito.
Magliano, o descendente de italianos e capitalista herdeiro, por definição de Max Weber, muito citado por nosso amigo, gostava de promover o diálogo e cutucar a importância e a força da sociedade. Em um dos seus artigos, escreveu “Não é nenhum segredo que o mercado financeiro, mesmo em 2017, é extremamente machista. A estigmatização da mulher e sua consequente exclusão nesse cenário, no entanto, possuem uma razão histórica, cujo conhecimento é indispensável para avançarmos em direção a uma sociedade mais igualitária”. Encerrou o mesmo texto com uma defesa brilhante: “A força das ideias para um agir transformador depende do conhecimento da história social das nossas instituições, seus limites e suas virtudes”.
Histórias, reflexões e ensinamentos não faltaram ao longo desses 78 anos de vida, mas a verdade é que ele não tinha medo de dizer o que pensava. Sua transparência sempre foi algo admirável. Mesmo com toda bagagem no mercado, costumava dizer que não entendia de Bolsa e que gostava mesmo era de pessoas. Viveu boa parte de sua vida em outra época, mas não deixou de usar os recursos para se comunicar.
Pouco antes de ser internado, decidiu entrar no Instagram. Ele estava animado, tinha melhorado de uma longa temporada de crises de asma. Estava disposto a desvendar outras tecnologias.
Mas ele nunca precisou estar nas redes sociais. Mesmo fora delas, era um comunicador com uma disposição e disciplina de dar inveja a qualquer jovem. Lia sempre todos os jornais, com frequência ligava para jornalistas para elogiar uma reportagem. Ele era um porta-voz fantástico, falava de todos os assuntos, buscava entender de tudo. Ao falar de política era reservado, não falava de nomes, não criticava pessoas e seus erros. Ele discutia ideias sobre o futuro.
Poucos sabem, mas Magliano seguiu muitos passos do pai, Raymundo Magliano, que fundou a corretora número 1 da Bolsa e também motivou a criação de uma entidade de classe das corretoras de valores. O pai chegou a presidente da Bolsa. Nessa época, o filho deu continuidade aos negócios e, uma década depois do falecimento do pai, assumiu a liderança da Bovespa.
Dizem que o fruto não cai longe do pé e, na família Magliano, a paixão pelo mercado de capitais chegou na terceira geração. Raymundo Magliano Neto também ouvia com atenção as histórias do avô e, antes de assumir a gestão da corretora da família, criou um projeto de educação financeira, a Expo Money, o evento itinerante que percorreu muitas capitais brasileiras. Foi nessa época que os caminhos dos autores deste artigo se cruzaram, dando início a uma amizade.
Depois de muitos ciclos, diferentes crises econômicas e mais 90 anos de história, em 16 de julho de 2020, o sonho de popularizar a Bolsa de Valores, nascido com o fundador da Magliano Invest, ganhou um novo impulso. A fintech Neon Pagamentos comprou a corretora, encerrando um ciclo e dando início a outro, em que os ensinamentos seguiriam rumo a um novo mercado com a Neon. O desejo de Raymundo Magliano de tonar o mercado de capitais acessível ao cidadão comum foi então expandido e ganhou novos rumos.
Com o acontecimento, Magliano Filho concedeu uma série de entrevistas para a imprensa e uma em especial para uma jovem repórter do Estadão. Ele ficou tão encantado pela forma como a história foi contada pela jornalista, que ligou para ela e para o editor, para agradecer. Quem faria isso? Alguém que dava valor às palavras e sabia que elas escritas valem ainda mais, pois ficam gravadas para a eternidade.
Raymundo Magliano Filho foi um homem capaz de questionar o status quo e de confrontar verdades estabelecidas. Sempre com um cativante sorriso no rosto e uma bondade imensa no coração.
Raymundo nos deixou, porém temos a sua obra. Temos um mercado de capitais muito mais democrático, temos muitas empresas preocupadas com a responsabilidade social e a diversidade. Ainda vivemos cercados de muitas injustiças neste país, porém temos a obra desse grande brasileiro para nos guiar na construção de um mercado de capitais e um Brasil mais justo, mais inclusivo e mais sustentável.
Com este artigo, pretendemos fazer um tributo não apenas ao querido amigo Magliano, mas a todos aqueles que perderam a vida para esta terrível pandemia. Queremos homenagear a todos aqueles que hoje enfrentam a dor da saudade de seus entes queridos.
Jurandir escreveu este artigo com Cristiane Moraes – é jornalista, assessora de imprensa, especialista em comunicação e marketing e fundadora da CM Comunicação Corporativa – cris@crismoraes.com.br