Valter Hugo Mãe é o nome artístico de um dos mais destacados escritores portugueses da atualidade. Seu romance “a máquina de fazer espanhóis”, assim mesmo, sem letras maiúsculas, já que o escritor é adepto da escrita sem letras capitais, retrata a ida do barbeiro António Jorge da Silva para o lar da Feliz Idade, nome do asilo aonde o protagonista foi levado para passar seus derradeiros dias de vida.
António Silva, um cidadão português comum, viveu até a morte da esposa uma vida sem sobressaltos, seguindo seu caminho dedicado à família e respeitando todas as regras sociais, o que incluiu a convivência, na maior parte da sua vida, com a ditadura salazarista.
Ao se aproximar da morte, o homem começou a rememorar grandes acontecimentos de sua história e conjecturar o que poderia ter sido diferente se ele tivesse assumido algum risco, deixado uma certa covardia de lado e mudado o rumo da sua vida acomodada.
O senhor António era um ateu fervoroso, portanto, não acreditava em desígnios divinos; assumiu a responsabilidade por ter seguido o curso da sua vida no modo automático, escolhendo sem se debater os caminhos que lhe pareciam menos arriscados e mais naturais.
Valter Hugo é um escritor genial por colocar nos seus personagens dilemas que perpassam a maioria dos seus leitores. Quem nunca se pegou imaginando como seria sua vida se um pequeno detalhe no passado fosse alterado ou se decisões diferentes tivessem sido tomadas?
Se 2020 tem um mérito, é de ter dado em cada um de nós uma enorme chacoalhada. No mínimo, virou nossa realidade e nossa vida rotineira de pernas para o ar. Muitos anseiam para que a pandemia passe logo para que possam recuperar o quanto antes sua antiga rotina roubada pela pandemia. Outros, no entanto, estão planejando grandes mudanças.
Morar em uma cidade no interior passou a ser mais factível com a possibilidade concreta de trabalho remoto. Sair fisicamente da empresa também mostrou para várias pessoas que seus horizontes podem contemplar uma carreira solo, como pequenas empresárias, consultoras ou prestadoras de serviços. Sem contar o enorme número de pessoas que se percebeu em relacionamentos falidos, suportados apenas em razão da pouca convivência diária.
Todos nós temos o direito – ou até, indo além, a obrigação – de buscar a própria felicidade. Passar a vida inteira preso a uma situação que desagrada é muito triste. Algumas vezes, por medo da mudança, pessoas passam a vida toda em profissões, cidades, casamentos e amizades que não lhes satisfazem. Vão deixando a vida passar e não tomam uma atitude concreta de mudança.
Dificilmente alguém aguenta por muito tempo uma situação de extremo desconforto, mas muitos passam a vida em estado desconfortável. A antiga metáfora dos sapos explica isso. Diz-se que, se jogarmos um sapo em uma bacia de água fervente, ele dá um grande salto e se livra de morrer queimado. Porém, se colocarmos o sapo em uma bacia com água sendo aquecida lentamente, ele acaba morrendo cozido.
Nunca fiz o teste com um sapo, mas sei que muitas pessoas se comportam dessa forma frente à vida. Se alguém é contratado por uma empresa e começa sendo mal tratado, logo começa a procurar outro emprego. Mas várias pessoas passam a vida fazendo coisas que consideram medianamente desagradáveis e pouco significativas.
A pandemia colocou grande parte de nós em estado de enorme estresse emocional. Muitos, além do estresse, têm sofrido com dificuldades financeiras ou até com a perda do emprego. Tudo isso pode ser um bom gatilho para grandes mudanças.
Por outro lado, decisões tomadas sob grande estresse nem sempre são as melhores. Então, o que fazer? Esperar a pandemia passar para mudar de vida após o seu fim, correndo o risco de nunca mudar e acabar os dias como o senhor Silva do livro de Valter Mãe? Ou tomar uma decisão radical e pular fora como os sapos em água fervente?
Diante dos riscos que grandes mudanças no “calor da batalha” representam e da possibilidade de passar uma vida inteira sem tentar mudar, existem vários caminhos intermediários. Diferente dos sapos, temos condições de planejar o futuro e buscar o melhor momento para fugir da água fervente.
Recentemente conversei com um casal que resolveu vender seu apartamento em São Paulo e comprar outro ao lado da mãe da esposa em uma cidade do interior paulista. Afinal de contas, utilizar a avó como apoio para as crianças sem aula parecia uma solução tranquila. Porém, a convivência que parecia tranquila a distância se mostrou bastante difícil com a proximidade recém-conquistada.
Se a mudança para uma cidade diferente parece a alternativa, que tal alugar uma casa no novo local e ir testando a vida diferente aos poucos? Se o casamento parece insuportável, que tal tentar um tempo separados antes de um rompimento total? Se deixar seu emprego e abrir uma empresa parece interessante, que tal tentar uma redução de jornada e ir se dedicando à nova empresa em tempo parcial, ou melhor, se possível, garantindo um contrato de prestação de serviços com o antigo empregador?
De forma alguma estou advogando em favor da manutenção do status quo de quem não está feliz com sua vida. Porém, é preciso pensar muito se a infelicidade é estrutural ou se é apenas resultado das dificuldades que a pandemia trouxe às nossas vidas.
Lembro um velho pensamento sufi, que diz que a verdadeira felicidade é tão importante que está escondida em um local muito seguro: dentro do nosso coração. É natural e até esperado que muitos estejam tristes neste momento, então, precisamos ser cuidadosos em achar que mudanças externas trarão a felicidade.
Decidir se é o momento de uma grande virada ou se devemos esperar um pouco mais para mudar é dividido por uma linha extremamente sutil. Pensemos muito antes de mudar e, se decidirmos mudar, ao invés de queimar as pontes que atravessamos, podemos tentar mantê-las de pé para evitar situações sem volta.