O novo Corona Vírus, o COVID19, espalhou o medo ao redor do mundo. Talvez como nunca, a humanidade esteja experimentando um sentimento de pânico coletivo tão grande. Sim, já enfrentamos riscos muito maiores, porém este é transmitido em tempo real.

Antes do perigo chegar até nós, já calculávamos quando ele chegaria. Mesmo não sendo a imagem real, qualquer criança que veja a esfera multipontas é capaz de reconhecer o vilão. O número de contaminações e mortes no mundo é compartilhado instantaneamente; infectologistas e cientistas das mais diferentes áreas fazem projeções do número de mortos em nosso território.

Esse medo, que ora se transforma em pânico, afetou os mercados financeiros internacionais de forma dramática, entretanto, foi particularmente cruel com uma parcela significativa de brasileiros que, pela primeira vez na vida, tinham se aventurado no mercado de renda variável. Quando falo em renda variável, não me refiro apenas a ações e fundos de ações, mas também a fundos multimercado, fundos imobiliários e títulos públicos pré-fixados.

Já tivemos outras crises econômicas duras, porém, agora, como nunca, a crise afetou um número extremamente grande de novatos. Também é diferente das outras pois parece que o refúgio sumiu. Correr para onde? Liquidar os investimentos e se refugiar no Tesouro SELIC para ganhar menos de 3% ao ano? Ou comprar dólares acima de R$ 5 para colocar em uma mala?

Sim, olhemos para o longo prazo, mas como diria John Maynard Keynes “no longo prazo todos estaremos mortos”. E agora José? Agora é a hora que crianças viram adultos, é o bar mitzvah dos investidores.

Claro que, diante da perspectiva da morte, os problemas financeiros parecem pequenos para quem não os tem. Mas o que é ter problemas financeiros? É não ter como fazer frente a um evento raro como a atual pandemia ou perder muito do muito que se tem?

Investigando a poupança

Muitos animais poupam, sejam os esquilos que acumulam nozes, sejam as gralhas que enterram os pinhões e assim acabam “plantando” as Araucárias no Sul do Brasil, sejam os ursos que poupam através de uma grande camada de gordura. Porém, todos os animais que poupam sempre o fazem em tempos de fartura. Nenhum, exceto os humanos, é capaz de se autoimpor restrições temporárias em função de um maior consumo futuro.

E por que nós humanos somos diferentes dos outros animais? O Homo sapiens, “homem sábio”, é a única espécie de primata bípede do género Homo ainda viva. Nossa espécie surgiu há cerca de 350 mil anos e adquirimos o comportamento moderno há cerca de 50 mil anos. E o que quer dizer “comportamento moderno”? Significa que nosso córtex pré-frontal passou a funcionar em sua plenitude.

É no córtex pré-frontal que processamos pensamentos complexos, que planejamos e imaginamos o que ainda não existe. É lá que refletimos sobre o passado e projetamos o futuro, foi o pleno funcionamento dessa estrutura que nos transformou na subespécie sapiens-sapiens, “homem que sabe o que sabe”. Nosso hardware tem cerca de 50 mil anos, porém nosso software está em constante transformação. Agora mesmo, nesta pandemia, nosso software se transforma.

O sapiens-sapiens viveu 38 mil anos exclusivamente como caçador coletor, estimativas dão conta de que conseguimos chegar da 2 milhões de habitantes desta subespécie no planeta terra apenas vivendo da caça e coleta. Porém, em algum lugar, provavelmente no Crescente Fértil, há cerca de 12 mil anos, descobrimos a agricultura. Lentamente ela começou a mudar nosso modo de vida e transformar o próprio planeta. Ainda existem raros habitantes que sobrevivem da caça e da coleta, porém a quase totalidade dos 7,8 bilhões de humanos da terra depende da agricultura para sobreviver.

A agricultura possibilitou o sucesso que tivemos em colonizar o planeta, porém trouxe uma dificuldade enorme para os que abandonaram a coleta em favor do cultivo da terra. O fracasso de uma colheita não poderia ser compensado por um esforço redobrado na coleta do dia seguinte, o fracasso só poderia ser compensado no ano seguinte.

A agricultura reforçou imensamente a importância da poupança. A falta de poupança, expressa em cereais estocados, poderia representar a fome e a morte de uma comunidade. Portanto, aí temos o primeiro motivo para poupar. Reserva para uma colheita imprevisível – a reserva de imprevistos nos tempos modernos.

Historicamente, ao estocar cereais, os humanos sofriam perdas; ter reserva para imprevistos representava um custo. Os caçadores coletores tinham algum senso de propriedade territorial, mas a agricultura elevou exponencialmente a ideia de posse da terra. Para um caçador coletor, ter um escravo não representava nenhuma vantagem competitiva, o que não acontecia na agricultura.

Um grupo de agricultores com reservas de alimentos poderia tomar as terras e a mão de obra de um grupo sem reservas durante uma frustração de colheita. Logo, a poupança além de salvar o próprio grupo durante um período difícil também poderia servir de ferramenta de expansão da atividade econômica durante uma crise.

Portanto, a formação de reservas passou a ter importância capital na sobrevivência e na multiplicação da riqueza. A poupança, assim, além de propiciar segurança também se transforma em instrumento de progresso financeiro.

Aqui surge um ponto fundamental que gostaria de salientar, a poupança que representava um custo e servia para a segurança se transforma em uma oportunidade de multiplicar o capital.

Dando um salto de 14 mil anos chagamos ao suitability, ou aportuguesando, adequabilidade de aplicações financeiras dos investidores. Normalmente o resultado de um teste de suitability classifica os investidores em relação a sua propensão ao risco: conservador, moderado e agressivo.

O problema é que poucas pessoas compreendem de fato o que é risco; até que tenham que pagar o preço por assumi-lo, é errado dizer que alguém é conservador ou agressivo.

A finalidade precípua da poupança é e sempre foi nos proteger dos imprevistos da vida. É por isso que pessoas sérias que trabalham com finanças sempre indicam que se reserve um montante das nossas poupanças para imprevistos, por mais agressivo que o investidor se considere.

Durante muito tempo, o brasileiro conseguiu ganhar dinheiro com sua reserva de imprevistos. Aplicações de elevada liquidez como os títulos públicos vinculados à SELIC, fundos DI e até a caderneta de poupança rendiam juros reais.

Quando os juros caíram, não foram poucos os “educadores financeiros” que berraram aos quatro cantos que essas aplicações estavam mortas, pois geravam prejuízo aos investidores, esquecendo que desde a pré-história se preparar para um futuro incerto representa um custo.

Infelizmente, a COVID19 colheu muitos brasileiros no contrapé; pessoas que abandonaram a segurança das aplicações pós-fixadas na busca de maior rentabilidade nas aplicações pré-fixadas e no mercado de renda variável. Esses investidores estão aprendendo da pior forma possível a respeitar o risco.

Retornando à pergunta do início do artigo: o que é ter problemas financeiros? Certamente o pior problema financeiro é precisar de dinheiro e não ter, é não ter como pagar as contas, como comprar comida e ter condições mínimas de sobrevivência e depender da ajuda de terceiros para viver.

Porém, ver os recursos duramente acumulados sumindo gera enorme desgaste emocional em pessoas não treinadas para tal. Então, classificar o sofrimento de quem perde suas reservas como não importante, pois não é pior do que o sofrimento de não ter reservas, não é correto.

Os juros reais negativos que eram novidades para os brasileiros provavelmente vão se incorporar à nossa rotina. E agora, o risco, das aplicações de risco, deixa de ser teórico para ser real. E sim, as aplicações de baixo risco e de rentabilidade negativa sairão mais vivas que nunca desta crise.

Assim como o agricultor que guarda a safra para poder se proteger da falta de alimentos no futuro, o investidor precisa entender que a liquidez é uma característica importante dos investimentos. Todo investidor precisa poder dispor rapidamente de parte da poupança para o momento em que surgir uma necessidade – ou, quem sabe, até uma oportunidade. Da forma mais dolorida, o investidor brasileiro está amadurecendo.

Author

É doutor em Finanças Comportamentais, com pós-doutorado em Psicologia Cognitiva pela Université Libre de Bruxelles (ULB) e professor de Finanças Pessoais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Write A Comment