Eu sempre tive uma grande dúvida, por que os brasileiros têm tão pouco apreço pelas empresas e pelos empresários? Me impressiona e desagrada ver a forma como os empreendedores são tratados por aqui. Em nossas novelas, janela da alma brasileira, empresários raramente trabalham, frequentemente são retratados como corruptos e desonestos. Nossos trabalhadores gostam de emprego, mas não de empregadores.
Em decorrência de minha profissão tive a felicidade de viver um ano na América do Norte e um ano na Europa. Na América os grandes empresários são vistos como heróis. Suas histórias são estudadas, muitos dão nome a auditórios ou mesmo a universidades. Em um círculo virtuoso os empresários fazem expressivas doações para essas instituições de ensino.
Na Europa não é surpresa para ninguém quando o proprietário de uma pequena empresa fecha seu negócio e vai aproveitar 30 dias de férias. O dono da padaria, da mercearia, da oficina mecânica ou do pequeno restaurante é respeitado em sua comunidade tanto quanto o professor, o juiz de direito, o médico ou o prefeito.
No Brasil empresário ou é bandido ou coitado, raramente é admirado e cultuado.
Yuval Noah Harari, autor da fantástica trilogia “Sapiens”, “Homo Deus” e “21 lições para o século 21” – indispensável para quem quer compreender nossa história de Homo sapiens e perscrutar nosso futuro –, afirma que um dos grandes motores do sucesso dos humanos na dominação do planeta foi sua capacidade de acreditar em comunidades imaginadas. Uma só dessas comunidades pode fazer com que centenas, milhares e milhões de indivíduos que não se conhecem colaborem entre si. Elas resultam de imaginação coletiva, consistindo em realidades intersubjetivas: só existem porque muitos acreditam que elas existem.
Nações, religiões e empresas de responsabilidade limitada são exemplos de realidades intersubjetivas. Para Harari a ideia por trás das empresas de responsabilidade limitada “está entre as invenções mais engenhosas da humanidade” e explica o desenvolvimento econômico das principais economias mundiais.
Durante a maior parte da história as empresas só poderiam pertencer a humanos de carne e osso. Se na França do século XIII Jean abrisse uma oficina, ele precisaria responder por ela com seus bens. Se Jean tomasse emprestadas mil moedas de ouro e o negócio falisse, ele teria de pagar o empréstimo vendendo sua casa, sua vaca e sua terra. Se não honrasse a dívida, poderia ser jogado na prisão pelo Estado ou ser escravizado por seus credores. Ora, até hoje essa ideia não parece muito absurda para nosso sistema judiciário nem para nossos políticos. Certamente não no sentido literal de escravizar, porém pesarão sobre o infeliz tantos processos e dívidas que ele se tornará escravo das pendências e talvez nunca mais possa abrir um novo negócio.
Mas por que o Estado brasileiro, por meio de seu sistema judiciário, executivo e legislativo, ainda não incorporou a ideia de empresa de responsabilidade limitada?
Comecei a formular uma explicação com a leitura do notável livro “História da riqueza no Brasil: Cinco séculos de pessoas, costumes e governos”, de Jorge Caldeira. O autor demonstra de forma magistral a relação que se estabeleceu desde o princípio entre os colonizadores europeus e os nativos habitantes do Brasil.
Ao contrário do que me ensinaram na escola, Caldeira mostra que não houve uma dominação, mas sim uma amalgamação entre as culturas dos nativos e dos europeus. Quando os navegadores chegaram no que é hoje o Brasil, aqui habitavam entre 4 e 8,5 milhões de pessoas falando mais de 170 línguas diferentes. Muitos povos, como os Tupi-Guarani, cultivavam a terra e geravam excedentes que poderiam ser, e foram, negociados com os europeus.
Entre a maioria desses povos o sistema de aliança se dava pelo casamento: os chefes ofereciam mulheres de suas tribos para se casarem com os oponentes, selando-se as alianças. A Igreja Católica e as Coroas de Portugal e Espanha tiveram que fazer vistas grossas para a poligamia e para o politeísmo. O governo era exercido pelos genros, ou seja, pelos europeus que aceitavam o sistema vigente de alianças. Quem não se adaptava virava sopa.
Assim o poder e os negócios eram feitos pelas e para as famílias. Segundo Harari, três grande ficções intersubjetivas moldaram o mundo moderno e permitiram que grupos enormes de humanos que não se conhecem cooperassem entre si: os governos, as religiões e as empresas. Essas realidades construídas, em grande parte responsáveis por trazer os europeus para o Novo Mundo, tiveram que se adaptar às famílias e às relações tribais.
Nos constituímos como nação baseados nas relações tribais. Somos lenientes com os bens públicos, pois o patrimônio do Estado não é percebido como algo a ser defendido. O governo precisa estar a serviço das relações pessoais. Os dogmas religiosos, tão caros a alguns grupos humanos, por aqui são amenizados e as religiões se misturam gerando o sincretismo, marco de nossa cultura. Finalmente, a empresa ainda é pouco entendida pela sociedade brasileira; em uma sociedade que se baseia em relações pessoais é difícil entender que uma empresa é diferente do humano que a criou.
Não importa o tamanho, pode ser um mega ou microempresário, se um dia seu negócio não der certo, os promotores públicos, os juízes do trabalho, os credores e a Receita Federal farão o possível para acabar com qualquer chance desse Homo sapiens se reerguer.
Quando uma nação acredita na empresa de responsabilidade limitada, entende que uma empresa é diferente do sapiens de carne e osso que a criou. Em um país desenvolvido é impensável confundir o patrimônio de uma pessoa ou família com o patrimônio de uma empresa limitada ou sociedade anônima.
Assim, os habitantes dos países que respeitam o princípio da separação entre o corpo de carne e osso e a corporação têm mais disposição para correr riscos; aqueles que abrem uma empresa e não obtêm sucesso são estimulados a voltar para a arena e empreender novamente.
Aqui no Brasil, ao primeiro sinal de problema em uma corporação, o sistema judiciário se vale do executivo para, por meio do BacenJud, bloquear os bens do empresário, de seu cônjuge e, se possível, de seus filhos e netos. A incompreensão e até mesmo o ódio que o sistema judiciário nutre pelo empresário podem ser comprovados por qualquer um que tenha presenciado uma audiência trabalhista, porém fica patente com a leitura do execrável livro de um ex-Procurador-Geral da República.
Penso que é fundamental trabalharmos duro para reverter esse traço cultural do povo brasileiro e mostrar que sem empresa e empreendedor não existe desenvolvimento. Entendo que todo o preconceito que existe contra empresa e empresário no sistema executivo, legislativo e principalmente judiciário nasce na sociedade.
O que mais me entristece é que nas escolas e universidades, onde o preconceito contra os empresários poderia ser combatido, ele ainda é forte e arraigado. Nas universidades, de maneira geral, ainda preparamos empregados e servidores públicos e acreditamos que empregos e produção nascem por geração espontânea. Será que um dia conseguiremos mudar esse quadro? Espero estar vivo para ver acontecer.